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Negligência global e pobreza dificultam o controle das leishmaniosesGlobal neglect and poverty hamper the control of leishmaniasis

Do ponto de vista sociológico, os maiores desafios são a pobreza e a negligênciaFrom a sociological point of view, the main challenge is poverty and neglect

13/07/2014

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Dr. Jean-Claude Dujardin é biólogo, professor do Instituto de Doenças Tropicais Antwerp (ITMA, Bélgica), chefe do Departamento de Ciências Biomédicas do ITM, chefe da Unidade de Parasitologia Molecular do ITMA, professor em tempo parcial na Universidade de Antwerp, Bélgica e coordenador do consórcio Kaladrug-R

A leishmaniose visceral (LV) ou Calazar (KA) tem sido relatada em 51 países ao redor do mundo com uma incidência anual de 500 mil casos, dos quais 90% ocorrem na Índia, Nepal, Bangladesh, Sudão e Brasil. Em entrevista à Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT), o Dr. Jean-Claude Dujardin fala dos desafios e avanços no combate à doença, especialmente a partir do projeto Kaladrug-R, lançado no final de 2008 com o intuito de monitorar a resistência aos medicamentos e resposta ao tratamento em LV no subcontinente indiano.

SBMT: Quais são as principais dificuldades da ciência no combate à leishmaniose visceral?

JCD: Eu responderia com uma resposta biológica e uma resposta sociológica. Do ponto de vista biológico, eu diria que o principal desafio para combater a leishmania é a sua incrível plasticidade (como o Kaladrug-R  mostra, o genoma do parasita pode se adaptar ao estresse por diversos mecanismos, como várias mudanças de ploidia, amplificações epissomais…) e sua capacidade de manipular sua célula hospedeira, o macrófago (o grande resultado da Kaladrug-R foi sua capacidade de cepas resistentes ao antimônio interferirem na sinalização em cascata do macrófago e forçar um efluxo da droga!). Do ponto de vista sociológico, os maiores desafios são a pobreza e a negligência. Ainda não existe atenção o suficiente para LV e outras doenças negligenciadas e ir contra essa negligência é essencial para encontrar novas drogas e vacinas. A situação é ainda pior para leishmaniose tegumentar. A parceria de instituições acadêmicas com companhias privadas, como é o caso dos modelos do DNDi  ou IOWH , é essencial para acabar com a negligência.

SBMT: Há previsão de quando uma vacina para leishmaniose em seres humanos será lançada?

JCD: É sabido que as primeiras vacinas contra leishmanioses foram contra leishmaniose canina. Uma análise superficial e amarga do que isso pode significar, é que isso está relacionado ao mercado veterinário desses produtos, mas eu seria mais otimista e lembraria que:

(i) a vacinação de cães pode ser integrada a uma estratégia de controlar LV zoonótica, e assim impedir a transmissão para humanos, e

(ii) que cães e a vacina canina são um bom modelo para uma futura vacina humana. Em relação à última pergunta, eu não sei quais foram os últimos avanços. Eu sei apenas que os desafios são muitos: imunidade é uma coisa complexa e eu não subestimaria o parasita que apesar de não evidenciar uma variação antigênica como o tripanossoma africano, é um mestre em adaptação e manipulação de sistemas imunológicos. Deste modo, nós temos observado cepas resistentes a drogas, e meu medo é que cepas resistentes a vacinas apareçam. Conseqüentemente, eu recomendaria monitorar que os parasitas encontrados em cães são humanos, mostrando o fracasso da vacina.

SBMT: Há quanto tempo existe o projeto Kaladrug-R e qual a finalidade dele?

JCD: O projeto Kaladrug-R foi custeado pela Comunidade Européia e reuniu 10 parceiros da Europa e do subcontinente indiano; iniciou no dia 1/11/2008 e oficialmente foi encerrado no dia 30/04/2013 (mas diversas atividades continuarão por anos através de colaboração bilateral).

O tratamento precoce é um ponto forte do atual programa para a eliminação da Leishmaniose Visceral (LV) no subcontinente indiano. Entretanto, o arsenal de drogas disponíveis é bastante restrito, e seu uso indiscriminado é prejudicial por criar resistência às drogas. Regimes de combinações contra VL estão em desenvolvimento, mas ainda levará algum tempo para se alterar a política de uso das drogas. Por enquanto, a eficácia dos medicamentos atuais devem ser preservadas para curar pacientes e garantir o controle constante da LV. Para isso, um fornecimento ininterrupto de drogas de alta qualidade, a promoção da adesão ao tratamento e monitoramento da eficácia do tratamento e da resistência à droga serão fundamentais. O último necessita de conhecimentos aprimorados e know-how, uma vez que as pesquisas clínicas e laboratoriais são fundamentais para garantir a política de drogas para o programa de eliminação da LV. O Kaladrug-R atingiu os seguintes desafios: nós focamos em desenvolver, avaliar e disseminar novas ferramentas para a avaliação de resistência à drogas de L. donovani, bem como metodologias inovadoras para monitorar a eficácia do tratamento do Calazar sob condições padrão.

SBMT: Quais os principais avanços do projeto Kaladrug-R em relação aos medicamentos contra a doença?

JCD: Como eu disse anteriormente, nosso objetivo não era desenvolver novas drogas, mas proteger as existentes conhecendo melhor os mecanismos de resistência e identificando marcadores que poderiam ser utilizados para seu rastreamento. As três drogas que nós consideramos em nosso projeto: antimoniais (hoje abandonadas na Índia devido à alta resistência), miltefosina (a droga oral atualmente utilizada no programa de eliminação) e paramomicina.  Neste contexto, os maiores avanços foram:

(i) a resistência antimonial surgiu varias vezes e em algumas populações de L. donovani, estava associada ao aumento da virulência do parasita. Estes super-parasitas ainda circulam na região onde não existe a droga, por que eles são muito fortes (o uso de antimoniais por décadas contribuiu para selecionar os parasitas mais agressivos, o que pode prejudicar a eficácia de novas drogas… o legado dos antimoniais); interessante notar que, a resistência aos antimoniais poderia ser revertida com drogas da farmacopéia humana para outros fins (imipramina e qüercetina), mas exigiriam algum trabalho antes de aplicações clínicas;

(ii) eficácia clínica da miltefosina (acompanhada em dois coortes de pacientes na Índia e no Nepal) está reduzindo, mas ainda não está relacionada ao surgimento de parasitas resistentes à miltefosina, bem como com a virulência dos parasitas (isso parece estar relacionado ao legado do antimônio mencionado acima); contudo, cepas com maior tolerância à miltefosina estão em observação, uma vez que nós tememos que seja uma questão de tempo até que a real resistência apareça;

(iii) É muito fácil criar, in vitro, cepas resistentes à miltefosina ou paromomicina e nós temos marcadores que devem permitir rastrear a resistência em amostras clínicas;

(iv) um grande feito do projeto foi o sequenciamento completo de 200 cepas de L. donovani: além de nos dar uma série de marcadores, nos permitiu reconstruir a história das epidemias desde 1850, data em que os primeiros casos de LV foram registrados na região;

(v) agora, nós temos uma coleção única de cepas resistentes que devem ser utilizadas em P&D de novas drogas para garantir que as drogas também são ativas contra esses parasitas resistentes.

Mais detalhes do Kaladrug em uma série de entrevistas e vídeos publicados por youris.com: Artigo:
Entrevista:  e Vídeo:

SBMT: Há perspectiva para a erradicação da leishmaniose? Se sim, para quando?

JCD: Erradicação (quando a doença não existe mais) não deve ser confundido com eliminação (declínio da incidência abaixo de certo limite mínimo. No caso da LV, existe um programa de eliminação na Índia, Nepal e Bangladesh, visando reduzir a incidência abaixo de 1/10.000 até 2015. Os últimos indicadores mostraram um declínio no número de casos e na mortalidade, mas a epidemiologia da LV no subcontinente Indiano é caracterizada por uma sucessão de epidemias espaçadas em intervalos de 10 a 15 anos. Deste modo, mesmo que os objetivos dos programas de eliminação estejam próximos, esse é o momento de termos atenção máxima: um relaxamento nos próximos anos pode ser fatal e de qualquer maneira, necessitamos de uma fiscalização próxima da evolução da infecção (não esqueça que a maioria das infecções são assintomáticas) e da doença nas próximas décadas, então, teremos criado as ferramentas moleculares para esse monitoramento. Por último, dentro do projeto Kaladrug-R, nós criamos um modelo matemático de LV, que demonstra entre outras coisas que somente quimioterapia não controlaria a doença, por conta do número de hospedeiros assintomáticos: isso é um grande motivo para não se negligenciar o vetor numa perspectiva de eliminação.

SBMT: Como o senhor vê a atuação da Medicina Tropical nos países tropicais, especialmente no combate às doenças infecciosas?

JCD: Diversas instituições em países tropicais (sendo Institutos de Doenças Tropicais ou outros) são fundamentais para combater doenças infecciosas. Sua força vem de combinar a proximidade direta das doenças, seu meio-ambiente e o conhecimento em clínica médica e saúde pública, bem como o know-how em pesquisa biomédica. Eles são centros de excelência, entre o básico, a pesquisa básica e aplicada e os três componentes devem ser fortalecidos posteriormente. Devemos estimular a troca de informações com eles, bem como com homólogos do Norte, para se criar uma relação de parceria igualitária e equilibrada. Um modelo para tal rede liga o Instituto de Medicina Tropical de Antwerp com vários centros de investigação na América Latina, África e Ásia (com financiamentos da Diretoria Geral Belga para a Cooperação e Desenvolvimento) O lema desta cooperação é invertendo os pólos: em outras palavras, cientistas e institutos do sul devem tomar a dianteira em esforços internacionais para melhorar a situação da saúde em seus países através de pesquisa, treinamento e suporte de políticas. Um documentário foi criado nesse sentido: Veja o trailer  e o filme completo estará disponível a partir do dia 17 de junho.

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Dr. Jean-Claude Dujardin is biologist, professor at the Institute of Tropical Medicine, Antwerp (ITMA, Belgium), Head of the department of Biomedical Sciences at ITMA, Head of the Molecular Parasitology Unit at ITMA, Part-time Professor at the University of Antwerp, Belgium and Co-ordinator of the Kaladrug-R consortium

Visceral leishmaniasis (VL) or Kala-azar has been reported in 51 countries around the world with an annual incidence of 500 thousand cases, from which, 90% occur in India, Nepal, Bangladesh, Sudan and Brazil. Interviewed by the Brazilian Society of Tropical Medicine (BSTM), Dr. Jean-Claude Dujardin talks about the challenges and advances fighting the disease, especially from the Kaladrug-R project, launched in late 2008 aiming to monitor drug resistance and VL treatment response in the Indian subcontinent.

BSTM: Which are the main difficulties for science in combating visceral leishmaniasis?

JCD: I would answer with a biological and a sociological answer. From a biological point of view, I would say that the main challenge to fight leishmania, is its incredible plasticity (as shown during Kaladrug-R , the genome of the parasite can adapt to stress through different mechanisms, like numerous ploidy changes, episomal amplifications…) and its capacity to manipulate its host cell, the macrophage (the most striking result found in Kaladrug-R was the ability of antimonial resistant strains to interfere with the signaling cascade of the macrophage to force efflux of the drug from the macrophage!). From a sociological point of view, the main challenge is poverty and neglect. There is not yet enough attention on VL and other most neglected diseases and countering this neglect is essential to find new drugs, vaccines. The situation is even worse for tegumentary leishmaniasis. The role of academic institutions in partnership with private companies as illustrated by the DNDi  or IOWH  models is crucial for countering the neglect.

BSTM: Is there a forecast for a human vaccine against leishmaniasis?

JCD: It is striking that the first registered vaccines against leishmaniasis were for canine leishmaniasis. A ‘bitter’ and superficial analysis of this could conclude that this is related to the veterinary ‘market’ existing for this type of products, but I would be more positive and would recall (i) that vaccination of dogs could be integrated in a strategy to control zoonotic VL and thus impede transmission to humans and (ii) that dogs and the dog vaccine constitute a good model for a future human vaccine. With respect to the latter, I don’t know the last developments. I know only that the challenges are numerous: immunity is complex and I would not under-estimate the parasite which despite not showing antigenic variation like African trypanosomes, is a master in adaptation and manipulation of the immune system. Thus, like we have observed drug-resistant strains, my fear would be that vaccine-resistant strains would start to emerge. Consequently, I would recommend monitoring the parasites encountered in dogs are humans showing vaccine failure.

BSTM: For how long does the Kaladrug-R project exist and what is its purpose?

JCD: The Kaladrug-R project was funded by the EC and gathered 10 partners from Europe and the Indian subcontinent; it started on 1/11/2008 and ended officially on 30/04/2013 (but several activities will continue for years through bilateral collaboration).

Early treatment is a major pillar of the current program for Visceral Leishmaniasis (VL) elimination in the Indian sub-continent. However, the arsenal of available drugs is very limited, and their indiscriminate use is jeopardized by drug resistance. Combination regimens for VL are under clinical development, but it will take several more years to change the drug policy. Meanwhile, the effectiveness of current drugs needs to be safeguarded in order to cure patients and ensure unremitting sustainment of VL control. For this, the uninterrupted supply of quality drugs, the promotion of treatment compliance and, the monitoring of treatment effectiveness and of drug resistance will be pivotal. The latter demands improved knowledge and know-how, hence clinical and laboratory research are urgently needed to support the drug policy of the VL elimination program. Kaladrug-R addressed these needs: we aimed to develop, evaluate and disseminate new tools for the assessment of drug resistance in L. donovani as well as innovative methodologies for monitoring Kala-Azar treatment effectiveness under routine conditions.

BSTM: Which are the main advances of the Kaladrug-R Project compared to other drugs against the disease?

JCD: As said earlier, our aim was not to develop new drugs, but to protect the existing ones by better understanding the mechanisms of drug resistance and identifying markers that could be used for its tracking. Three drugs were considered in our project: antimonials (now abandoned in the Indian sub-continent, because of drug resistance), miltefosine (the oral drug currently used in the elimination programme) and paromomycin. In this context, the main advances were:

(i) antimonial resistance emerged several times and in some populations of L.donovani, it is associated with increased virulence of the parasite; these ‘super-parasites’ still circulate in the region in the absence of the drug, because they are highly fit (thus decades of use of antimonials contributed to select more aggressive parasites, which could jeopardise efficacy of future drugs….the legacy of antimonials); interestingly, antimonial resistance could be reverted with drugs used in human pharmacopeia for other purposes (Imipramine and Quercetine), but further work is needed before potential clinical applications;

(ii) clinical efficacy of miltefosine (followed in two cohorts of patients in India and Nepal) is decreasing, but is not related yet with the emergence of miltefosine-resistant parasites, well with the virulence of the parasites (this seems to be related with the legacy of antimonial resistance mentioned above); however, strains with higher tolerance to miltefosine are observed, hence we fear that it is a question of time that true resistance will emerge;

(iii) in vitro, it is very easy to generate strains resistant to miltefosine or paromomycin and we have molecular markers that should allow tracking resistance in clinical samples;

(iv) a major achievement of the project was the whole genome sequencing of 200 strains of L. donovani: besides providing us a series of markers, it allowed us to reconstruct the history of the epidemics since 1850, date at which the first cases of VL were reported in the region;

(v) we possess now a unique collection of resistant strains that should be used in R&D pipelines for new drugs…to ensure that new drugs are also active against these die-hards!

You can find more details on Kaladrug in a recent series of interviews and videos published by youris.com: Article:
Interview:  and Video:

BSTM: Is there a perspective of when leishmaniasis could be eradicated? If so, when?

JCD: Eradication (the disease does not exist anymore) should be distinguished from elimination (decrease of incidence below a certain threshold). In the case of VL, there is a running elimination programme in India, Nepal and Bangladesh, aiming to reduce incidence below 1/10,000 by 2015. Last indicators show a decrease of the cases and of the mortality, but the epidemiology of VL in the Indian sub-continent is characterized by a succession of epidemics at 10-15 yrs of interval. Thus, even if the objectives of the elimination programme seem to be very close, this is the moment in which a maximal attention must be given: a relaxing in the next years could be fatal and anyway, a close surveillance of the evolution of infection (don’t forget that most of the infections are asymptomatic) and disease is required in the next decades and we have generated the molecular tools for this monitoring. Last but not least, within the Kaladrug-R project, we generated a mathematical model of VL, which demonstrated among others that chemotherapy alone will probably not control the disease, because of the abundance of asymptomatic (untreated) carriers: this is a strong advocacy not to neglect vector control in an elimination perspective.

BSTM: How do you evaluate the role of Tropical Medicine in tropical countries, especially when combating infectious diseases?

JCD: Several institutions in tropical countries (being Institutes of Tropical Medicine or others) are playing a key role in combating infectious diseases. Their strength is to combine the direct proximity to the diseases and their environment, the clinical and public health expertise as well as the know-how in biomedical research. They constitute centres of excellence, at the interface between basic, applied and operational research and the three components should be further strengthened. Networking among them together with Northern homologues should be promoted in a relationship of equal and balanced partnership. One model for such networks links the Institute of Tropical Medicine of Antwerp with several centres of investigation in Latin America, Africa and Asia (with financial support of the Belgian Directorate-General for Development Cooperation). The motto of this collaboration is ‘switching the poles’: in other words, scientists and institutes in the south should take the lead in the international efforts to improve the health situation in their countries through research, training and policy support. A documentary was made on this effort: you can see the trailer  and the whole movie will be available from 17 of june.