_destaque, Notícias

O calazar e a lei: uma discussão sobre o sacrifício e o tratamento de cães Kala-azar and the law: a discussion about dog treatment or sacrifice

Governo e especialistas divergem sobre regras a respeito de animais com leishmanioseThe experts diverge from the government about rules regarding animals with leishmaniasis

06/01/2015

O

O calazar e a lei no Brasil: falta visão política e interesse por parte dos administradores do poder? Dos 88 países do mundo onde a doença é endêmica, somos o único que utiliza a morte dos cães como instrumento de saúde pública

Pingo (nome fictício) conheceu ao menos dois estados brasileiros em cinco anos. Nesse período, viu o mar, cachoeiras e os primeiros meses de vida de uma criança. Esse foi seu tempo de sobrevida após fazer o tratamento para uma doença chamada leishmaniose. Um mal que tem controle por meio de medicamentos que são restritos apenas a humanos no Brasil e não podem ser utilizados por Pingo, que é um cachorro.

Para que o animal sobrevivesse, foi necessário que o dono – que será identificado nesta matéria pelo nome fictício de José – fizesse o tratamento no cão com medicamentos de uso humano ou não registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o que é proibido pela Portaria Interministerial MS/MAPA nº 1426/2008.

Na época em que decidiu fazer o tratamento, não havia nenhum amparo legal que permitisse ao dono do cão realizar tal procedimento. Ou seja: tanto José quanto o veterinário que tratou do caso eram considerados foras da lei. O crime? Tentar salvar uma vida.

“Esse cachorro era, até o nascimento do meu filho, o ente não familiar mais importante da minha vida. Ele viajava, ia à praia, à cachoeira, acampava, nadava comigo. Era o meu amigo de verdade e, de repente, vejo esse meu amigo doente. Pingo, mesmo já debilitado, chegou a conhecer o meu filho. Nunca tive nenhum receio da proximidade dos dois. Meu filho era uma criança de menos de um ano de idade, mas nunca restringi o contato entre eles que, inclusive, brincavam juntos”, relembra.

O caso de José é ainda mais raro por ele conhecer bem a doença, o que possibilitou que tanto o contato do cão com a criança quanto o tratamento não fossem tabus dentro de casa. No entanto, o tema é visto de forma diferente pelos órgãos governamentais.

As discutíveis regras brasileiras para cães com a doença já causam estranheza quando comparadas às de outros países. Apesar do cuidado de cães infectados serem comuns na Europa, onde há tratamentos eficientes, no Brasil, o entendimento do Ministério da Saúde é o de que a utilização de drogas destinadas a seres humanos com leishmaniose visceral é considerada um risco. Das 88 nações do mundo onde a doença é endêmica, o Brasil é o único que utiliza o sacrifício dos cães como instrumento de saúde pública.

Em nota, o órgão afirma que o método pode até resultar no desaparecimento dos sinais clínicos no animal, mas que estes continuarão como fontes de infecção, sendo, portanto, um risco para saúde das populações humana e canina. A Pasta acrescenta que o uso desses medicamentos em animais contribuiria para a seleção e disseminação de parasitas mais resistentes.

Posicionamento contestado

As justificativas do Ministério, no entanto, levantam debatem. Isso porque a aplicação de antibióticos de uso humano em animais é largamente utilizada na agroindústria. Além disso, não existe nenhuma evidência de que a resistência a fármacos anti-Leishmania tenha ocorrido na Europa, onde o uso desses medicamentos em cães é permitido há décadas.

Não há risco para o ser humano sequer conviver com o animal infectado. Isso porque a leishmaniose, assim como a dengue, é uma doença transmitida por vetores. Logo, o fato de o animal estar no mesmo ambiente não indica a presença do transmissor da enfermidade. A transmissão da doença se dá por meio do inseto conhecido como mosquito-palha. Quando pica um ser infectado, o mosquito pode retransmitir a doença para outros humanos ou animais.

Mesmo as ações atuais de controle ao transmissor da doença levantam um ponto polêmico. Segundo o Ministério da Saúde, medidas para essa finalidade só podem ser tomadas, em uma determinada região, apenas quando é registrado um caso humano de leishmaniose.

“É discutível a forma que o Ministério trata a questão do vetor. Ou seja, esperar que ocorra um caso em seres humanos para adotar ações de controle químico para a eliminação dos mosquitos. E a Pasta ainda diz que o cachorro é o grande problema. Isso é, no mínimo controverso”, reclama a doutora em Epidemiologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Campinas (FMUC), Andrea Paulo Bruno von Zuben.

A especialista trabalhou em um projeto em 2009, na cidade de Campinas, São Paulo, que obteve resultados animadores. Cerca de 1,5 mil cachorros de dois bairros da região leste do município receberam coleiras que repelem o mosquito transmissor da leishmaniose. “Diminuiu bastante a prevalência após a colocação dessas coleiras, evitando a expansão da enfermidade. Não registramos casos em humanos desde 2009”, comemora.

Apesar do uso de coleiras já ser adotado em diversos países junto com o tratamento de animais, a ação não é recomendada pelo governo brasileiro enquanto medida de saúde pública. “Se eu quiser usar no meu cachorro eu posso, mas a prefeitura não pode fazer o mesmo em relação a outros cães. A recomendação é que os infectados sejam recolhidos para serem sacrificados”, lamenta a médica veterinária.

A especialista, no entanto, acredita que, a partir de evidências científicas que mostrem a devida dimensão da prevalência da leishmaniose, o Ministério da Saúde venha a “mudar de opinião”. “Projetos como o realizado em Campinas também foram feitos em outros lugares, como em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde as ações foram um sucesso junto à população animal. Acho que, conforme novas evidências venham surgindo, haverá também mudanças de posicionamento por parte do governo”, afirma.

Sacrifícios não reduzem casos

Em outubro do ano passado, uma liminar (nº 677) assinada pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Joaquim Barbosa, permitiu o tratamento de cães com leishmaniose. A ação foi movida na época pela Sociedade de Proteção de Bem Estar Animal – Abrigo dos Bichos, de Campo Grande, por meio do advogado Dr. Wagner Leão do Carmo.

“Aqueles que ingressam na Justiça vêm obtendo, reiteradamente, autorização para o tratamento e o fazem com a assistência imprescindível de um médico veterinário, usando tanto remédio tido por “humano”, mas que, em laboratório foram testando em animais, como os de uso veterinários”, explica o advogado.

Dr. Wagner lembra que o julgamento do tema por parte do STF se valeu de precedentes judiciais, como a definição de que a política pública de extermínio é “drástica e até mesmo cruel”. Ele ainda criticou o embasamento da Portaria nº 1426/2008, uma vez que esta não se apóia em estudo cientifico sério e é um mero ato regulamentador que não pode transbordar o limite da norma que lhe dá fundamento de validade. “Assim”, declara o advogado, “a Portaria é ilegal, bem como o Decreto 51.838/62, e o faz amparado e incontáveis decisões de diversas Cortes, inclusive a instância máxima, o Supremo Tribunal Federal, pois viola o limite constitucionalidade e legalidade das normas”.

O Ministério da Agricultura defende a normativa que proíbe o uso de medicamentos para humanos e não registrados no órgão como forma de evitar o risco do animal continuar sendo portador da doença. “Além das razões legais, não existem estudos realizados nas condições brasileiras com produtos de uso veterinário que comprovem a eficácia do tratamento em cães”, diz nota da Pasta, acrescentando que “isso representa um risco potencial de transmissão para outro animal ou para o homem”.

Apesar das alegações de risco relativas ao tratamento, os números mostram que os humanos infectados anualmente vêm se mantendo constantes, mesmo com a matança de cães.

No Brasil, entre 2000 e 2011, são quase 3 mil registros da enfermidade por ano em humanos, segundo o Ministério da Saúde. Em relação aos animais sacrificados, dados do Centro de Controle de Zoonoses de Campo Grande destacam que, nos primeiros sete meses de 2014, foram avaliados e mortos 8.536 cães, sendo que 94,6% deles foram diagnosticados com leishmaniose. Desse percentual, o advogado adverte que 20% dos exames realizados apresentam como resultado um falso-positivo.

“Neste grande navio chamado Ministérios [Agricultura e Saúde], onde nada funciona bem, se toma decisões equivocadas – não, se sabe se proposital ou não – motivadas por desejos inocentes ou não”, lamenta o Dr. Wagner.

Interesse político

Outros motivos para não haver mobilização governamental sobre o tema podem ser a falta de visão política e de interesse por parte dos administradores do poder, de acordo com o advogado. A Portaria nº 1426/2008, aliás, visa regulamentar um decreto criado em 1962, quando não havia pesquisas conclusivas como se tem na atualidade. “Hoje os estudos comprovam que exterminar o cão não reduz a incidência da leishmaniose”, aponta.

“Os números absurdos falam por si e mostram que é preciso tomar providências com urgência. Ressaltam ainda à necessidade de se adotar iniciativas preventivas, tais como: controle da população canina por meio de esterilização, vacinação e cadastramento de proprietários”, esclarece o Dr. Wagner.

Apesar de ser responsável pela defesa do direito aos animais por uma alternativa ao sacrifício, o advogado alega que não é a favor da divisão da sociedade entre os que querem e os que não querem o tratamento. “Até porque entendo que um número grande de animais não possui condições mínimas de se submeterem a isso. Mesmo no caso dos que possuem, é preciso que seja feito por meio de uma posse responsável que signifique tratar e zelar pelo ambiente da moradia”, explica.

Enquanto isso, no meio da polêmica sobre o tratamento ou o sacrifício, estão milhares de cães e seus donos. Homens e mulheres com histórias e laços com animais que desejam apenas manter um amigo por perto. Como foi o caso de José, ilustrado no início desta matéria, tantos outros ainda se apegam à esperança de encontrar uma solução que não seja unicamente o de uma morte prematura. Esperam nada mais do que o óbvio: apenas uma alternativa de bom senso.

Kala-azar

Kala-azar and the law in Brazil: does it lack political vision and interest in the power’s managers? From the 88 countries where kala-azar is endemic, we are the only one considering dog culling as an instrument of public health

Pingo (real name withheld) visited at least two other Brazilian states in five years. During this time, he saw the ocean, waterfalls and the first months of a child. This was his survival time achieved after being treated for a disease called leishmaniasis. A disease that can be controlled using human-restricted drugs in Brazil and could not have been used by Pingo, who was a dog.

For the animal to survive, it was necessary that his owner – who will be identified in this article by the fictitious name Jose – treated his dog with drugs for humans or not registered in the Ministry of Agriculture, Livestock and Supply (Mapa), what is prohibited by the Joint Ordinance MS/MAPA no. 1426/2008.

By the time he decided to carry on with the treatment, there was no legal support to allow owners to conduct such procedure. This means: both Jose and the veterinary doctor who treated the case were considered outlaws. The crime? Trying to save a life.

“This dog was, until the birth of my son, the most important non-family member. He travelled with me; we would go to the beach, to waterfalls, camping and swimming. He was a true friend and, all of a sudden, I find this friend sick. Pingo, even after very weaken, met my son. I never had any fear regarding their proximity. My son was a child in his first year of life, but I never restricted their contact, who would even play together”, reminds.

Jose’s case is even rarer because he knew the disease very well, what made both the dog-child contact and the treatment not become taboos in the Family. However, the theme is not seen the same way by the government.

The questionable Brazilian rules for dogs infected with the disease are strange enough when compared to other countries. Despite caring infected dogs in Europe is a common practice, where efficient treatments are available, in Brazil, the understanding of the Health Ministry is that using drugs for humans with visceral leishmaniasis in animals is risky. Out of the 88 worldwide nations where the disease is endemic, Brazil is the only one using dog sacrifice as a public health instrument.

In notice, the Authority affirms the method could even result in the disappearance of the clinical sign in the animal, but these would still continue as infection sources. The Authority also adds that the use of these drugs in animals would favor the selection and dissemination of more resistant parasites.

Contested position

The ministry’s justifications, however, brings discussions. This happens because the use of antibiotics in animals is widely used in the agroindustry. Besides this, there is no evidence that resistance against anti-Leishmania drugs ever happened in Europe, where the use of these drugs for dogs is allowed for decades.

The is no risk for the human to even live together with the infected animal. This is because leishmaniasis, as dengue fever, is a vector-borne disease. Thus, the fact of the animal being in the same environment does not imply the presence of the vector. The disease is transmitted through the bite of an insect known as sandfly. When it bites an infected being, the mosquito can retransmit the disease for other humans or animals.

Even the current control measures against the disease’s vector raise a controversial point. According to the Health Ministry, measures for this mean could only be taken, in a selected region, when a human case of leishmaniasis is reported.

“The way the Ministry deals with the vector is discussable. This is, waiting for a human case so that chemical control to eliminate the mosquitos is put in practice. The Authority also says the dog is the great problem. This is, at the minimum, controversial”, complains the Epidemiology PhD from the Medical School of the Campinas University, Andrea Paulo Bruno von Zuben.

The expert was involved in a project in 2009, in the city of Campinas, Sao Paulo State, which achieved exciting results. About 1.5 thousand dogs in two eastern neighborhoods in the city were given sandfly-repellent collars. “The prevalence reduced very much after the collars were used, avoiding the expansion of the disease. He have not registered human cases since 2009”, she celebrates.

Despite collars are used in several countries along with the treatment, the action is not recommended by the Brazilian Government as a public health action. “If I want to use it on my dog, I can, but the Cities cannot do the same regarding other dogs. The recommendation is that infected dogs are to be retrieved for sacrifice, regrets the veterinary doctor.

The expert, however, believes that, supported by scientific evidence that prove leishmaniasis’ real prevalence dimension, the Health Ministry could “change its opinion”. “Projects conducted in Campinas were repeated in other places, as Campo Grande, Mato Grosso do Sul State, where the actions were also successful along the animal community. I believe, as new evidences appear, there will be a shift in the government’s positioning”, affirms.

Sacrifices do not reduce cases

In last October, a preliminary decision (no. 677) signed by the then president of the Federal Supreme Court (STF), minister Joaquim Barbosa, allowed the treatment of dogs with leishmaniasis. The action was filed at the time by the Animal Protection and Well-Being Society – Abrigo dos Bichos (Animal Shelter, in English) in Campo Grande, through the attorney Wagner Leão do Carmo.

Those who start lawsuits in the Justice have achieved, repeatedly, authorization to treat their dogs and do this with the indispensable assistance of a veterinary doctor, using both “human” drugs, but that were tested in animals in laboratory, as animal-intended drugs, explains the lawyer.

Mr. Wagner reminds the trial of the theme by the STF was decided with court precedents, as the definition of the sacrifice public policy as “drastic of even cruel”. He also quoted the Joint Ordinance no. 1426/2008, once it is not supported by a serious scientific study and is a mere regulation act that cannot overcome the limits of the rule that validates it. “This way”, declares the lawyer, “the Joint Ordinance is illegal, as well as the Decree 51.838/62, and makes it supported and uncountable decisions in several courts, even the highest court, the Supreme Federal Court, since it violates the constitutional limits and legality of the rules”.

The Agriculture Ministry defends the rule that prohibits the use of human-intended or non-registered drugs as a way of avoiding the risk of the animal continuing as a source of the disease. “Besides the legal reasons, there are no studies conducted according to the Brazilian reality that can prove the efficiency of treating dogs”, said the Authority through notice, adding this “would mean a potential infection risk for other animals and humans”.

In Brazil, between the year of 2000 and 2011, almost 3 thousand people were reported with the disease per year, according to the Health Ministry. Regarding the sacrificed animals, the Campo Grande Zoonosis Control Center reported that in the seven first months of 2014, 8,536 animals were evaluated and sacrificed, from which 94.6 were diagnosed with leishmaniasis. From these, the lawyer adverts that 20% of the conducted tests presented a false-positive result.

“This great ship called Ministries [Health and Agriculture], where nothing works properly, wrong decisions are made – it is not known whether they are intentional or not – motivated by innocent desires or not”, regrets Mr. Wagner.

Political Interests

Other reasons for the government not mobilizing about the theme could be the lack of political vision or interests from the power’s managers, according to the lawyer. The Joint Ordinance 1426/2008, by the way, intends to regulate a decree created in 1962, when there were no conclusive researches as there are today. “Our recent studies prove that exterminating the dogs will not reduce leishmaniasis incidence”, points.

“The absurd numbers speak for themselves and show that urgent measures must be taken. They also highlight the need to adopt preventive measures as: controlling the canine population through sterilization, vaccination and registration of the owners”, clears Mr. Wagner.

Despite being responsible for the defense of the right of animals to have an alternative to sacrifice, the lawyer alerts that he does not seek division in the society from those who wish to treat and those who do not. “I even understand a large number of animals have no conditions to undergo this. Even for those who have must practice a responsible ownership, which means treating and caring for the entire household”, explains.

Meanwhile, in the crossfire of treatment or sacrifice, there are thousands of dogs and their owners. Men and women with stories and bonds with animals they wish to have as a close friend. As was in Jose’s case, illustrated in the beginning of this article, many others are still attached to the hope to find a solution rather than only premature death. They hope for nothing but the obvious: a common sense alternative.